segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Um bem velhinho

Confissões

sentei-me, hoje, aí contigo
na pequena mansarda que habitaste
bem perto da casa de meus pais
num esconso duma leitaria
e entre um bolo de arroz
e um café
deixei-te fazer o meu mapa astral

que susto!
quando me afirmaste
que quem nasceu nesse dia
nessa hora, nessa cidade
não fora eu - era a outra
a criança encurralada
na casa grande de Campo d'Ourique
a que dava dissabores
a que não estudava
a que tinha medos sofridos
a que inventava
essa, a tal,
a desconhecida
a que cedo aprendeu a calar
seu interior
a que só se afirmava
na solidão
a que passava encostada às paredes
a que na sesta obrigatória
contava histórias a si própria
a partir das sombras que passantes
projectavam na parede;
a outra, a espalhafatosa
a que ria
a Maria Rapaz
a das correrias e amigos
não existia
não nascera
era fumo
pura invenção
raiva e disfunção

depois... ao veres meu medo e cobardia
lançaste teus castelos ao vento
e no teu jeito melancólico
distanciado, solitário mas vibrante
falaste-me dos teus muitos outros
e ainda dos outros que nunca verbalizaste
dos inventados para baralhar
o burguês académico e pseudo-intelectual
daqueles que não chegaste a encontrar
mas que pressentiste
nos teus corredores de solidão
que, em ti, formavam um labirinto
depois ainda
largaste a rir
da tua estátua na Brasileira
"- pobre de mim, maltratado em vida
depois de morto, ao sol, à chuva,
às festinhas dos passantes
dos solitários que comigo conversam
dos turistas que me levam nos seus
daguerreótipos actuais.
...
e a Casa Fernando Pessoa?
- onde me quiseram cercar -
aquele vespeiro de lobbies
de senhores que se acotovelam
para em biquinhos dos pés
serem maiores do que eu!...
...
deixem-me rir...
e dizem alguns que eu era louco!
tudo depende do ponto de vista
ou do ponto de fuga!..."

pois é, mestre,
é preciso fabricar loucos
para serenar os espíritos vãos
daqueles que nada são!

e porque estava frio
saímos os dois de braço dado
ao encontro dos nossos eus

Lisboa, 28 de Janeiro de 2000

14 comentários:

argumentonio disse...

sim, certo, mas... quem?

pico minha ilha disse...

Uma permanente procura de nós próprios.Abraço

© Maria Manuel disse...

excelente poema, Helena!

Teresa Durães disse...

ñão dará a loucura uma noção do que é a realidade?

ma grande folle de soeur disse...

Das coincidências... tb eu, hoje, pensei em FP... :)

Manuel Veiga disse...

e saiste em excelente companhia. à procura...

(espero que a Belém. comendo pasteis de nata...)

... e o Fernando um pouco piegas:

"ai que tortura que fogo
se estou perto dela é logo
uma névoa em meu olhar
uma núvem em minh´alma
e eu sem a poder achar..."

beijo, querida amiga

gostei tanto, tanto de teu poema!

Ana disse...

Na busca da verdade que somos.

Velhinho mas tão belo, Helena.
Um beijo e boa viagem.

Ad astra disse...

um poema de descobrir(te)

fantástico, HFM no seu melhor

Graça Pires disse...

O poema pode ser velhinho. A escrita é jovem e excelente. Um beijo Helena.

delusions disse...

adorei!



Sofia*

mariab disse...

um poema que te revela, excelentemente "trabalhado". Fernando Pessoa teria gostado. beijos

addiragram disse...

Só mesmo Ele te poderia ter "tocado" desta maneira...Parabéns pelo lindíssimo poema!

jrd disse...

Velhinhos são os trapos. Viva é a sua poesia.
abraço

Luis Eme disse...

só uma palavra: Lindo!